Perdido na translação

Prólogo

Esta resenha provém de uma brochurazinha reles, usada e puída, de capa esmaecida quem sabe desde o dia em que saiu do prelo, que comprei há uma vida inteira na feira dominical do Mercado de Sant Antoni, em Barcelona: Un hiver a Majorque, relato da atribulada redescoberta pela Europa culta, na pessoa da escritora francesa Amandine Dupin, pseudônimo George Sand, da ilha balear de Maiorca na primeira metade do século XIX.

Por motivos que concernem somente a mim e ao psicanalista que frequentei outrora e hoje guardo no baú das recordações seletivas, mas que acabaram me trazendo até esta circunstância em que você e eu, caro leitor, neste exato momento nos encontramos, decidi, ao retornar ao Rio de Janeiro em 1991, traduzi-la para o português junto com uma narcótica seleção de crônicas do escritor catalão Josep Pla intitulada El Cuadern Gris - una tria e uma frenética coleção de escritos políticos do revolucionário ex-russo, hoje ucraniano, Leon Trotsky, publicada em Paris no ano de 1974 sob o titulo auto-explicativo Sur la Deuxième Guerre mondiale.

Se do que acaba de ler você deduziu que eu tenho pendor intelectual para o ecletismo e uma alma inapelavelmente dispersiva, acertou; se, por outro lado, concluiu que eu domino os idiomas francês e catalão, errou redondamente: na verdade eu mal domino o português, como se pode observar, e apenas arranho o inglês, do qual já tive no entanto, a essa altura, a oportunidade de trazer para o vernáculo mais de 50 obras de natureza diversa. Chegamos, assim, a mais uma dedução sobre o universo mental deste que escreve, qual seja o seu amadorismo incorrigível, e - finalmente! - ao objeto deste relato, do qual nos acercaremos pouco a pouco.

Por ora cumpre dizer que, chamado às falas pela dura realidade da vida por ganhar, acabei não traduzindo nenhuma daquelas obras, muito menos aprendi, como teria gostado, os seus fascinantes idiomas de origem. O auto-imposto choque de ordem implicou dedicar-me, pela primeira vez de corpo e alma, ao exercício do meu ofício verdadeiro, diria mais exatamente oficial não fosse a bisonha redundância: o urbanismo. A tradução foi minha vida paralela, a amante publicamente assumida com quem alternei, noites adentro, os prazeres diurnos do meu breve, porém intenso, matrimônio profissional com a administração da cidade do Rio de Janeiro. 

Retornando à musa deste prólogo, foi ainda na introdução de Un hiver a Majorque, intitulada “Carta de uma ex-viajante a um amigo sedentário” - o amigo François Rollinat -, que me deparei com uma surpreendente confissão:

Qual! Minhas mais belas e agradáveis viagens eu as fiz no conforto da minha casa, com os pés no calor da lareira e os cotovelos apoiados nos braços puídos da poltrona da minha avó”.

Quis o destino que, mais de vinte e cindo anos depois, com as crianças já emancipadas e muitas outras coisas definidas de um modo nunca imaginado, eu me descobrisse protagonista de uma versão bastante singular dessa mesma experiência, qual seja, ter passado uma parte nada desprezível da minha vida em uma louca sucessão de viagens pelo mundo de hoje, de ontem e de tempos quase imemoriais sem tirar os pés do chão duro do quartinho dos fundos de um velho apartamento na Tijuca, os cotovelos apoiados nos braços carcomidos de uma cadeira giratória adquirida num brechó e as pálpebras recolhidas ao seu nicho ocular pelo efeito combinado da curiosidade insaciável, do perfeccionismo diletante e dos trocados acrescidos, todo santo início de mês, ao meu periclitante saldo bancário. 

Assim se explica, para provável consternação dos denodados profissionais dessa venerável atividade, o meu avatar de tradutor.